A “História do olho” de Georges Bataille

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Georges Bataille

Algumas obras literárias possuem o estranho magnetismo que nos chocam ao seu primeiro contato. Ainda nas primeiras páginas, sem a dimensão real do conteúdo que as páginas seguintes nos reserva, seguimos a leitura num misto de espanto e deslumbramento, onde a curiosidade e o estranhamento caminham de par em par. Assim foi minha experiência com a leitura de “História do olho”, romance de estreia do escritor francês Georges Bataille (1897-1962), que no segundo parágrafo, nos conta como o narrador se aproximou da personagem Simone e, três dias após se conhecerem, já frequentava sua casa de campo. O narrador desconcerta o leitor já no segundo parágrafo, onde descreve a seguinte passagem: “Suas meias de seda preta subiam até o joelho. Eu ainda não tinha conseguido vê-la até o cu (esse nome, que eu sempre empregava com Simone, era para mim o mais belo entre os nomes do sexo). Imaginava apenas que, levantando o avental, contemplaria sua bunda pelada” (BATAILLE, 2003, p. 23).

Entre os principais aspectos do romance de Georges Bataille publicado em 1928, o erotismo e a transgressão ocupam um espaço fundamental. Sua narrativa brutal e dilacerante mistura alguns traços autobiográficos. Bataille começou a escrever a História do olho por incentivo de seu psicanalista, Adrien Borel. De acordo com Eliane Robert Moraes, que faz a apresentação do livro de Bataille, publicado no Brasil pela Cosac Naify, Borel procurava através de seu método fazer com que o escritor conseguisse “reconciliar o filósofo e o devasso que abrigava dentro de si”. Nessa época, Bataille trabalhava como funcionário da Biblioteca Nacional da França e pelo conteúdo do livro, temia perder seu cargo como bibliotecário e acabou publicando o livro com o nome de Lord Auch.

No primeiro parágrafo do ensaio escrito por Michel Leiris temos um panorama geral do livro de estreia de Georges Bataille: “Uma praia qualquer, com suas villas para famílias em férias e suas violentas tempestades de verão, uma Espanha em que não faltam os estrangeiros e as visitas a igrejas nem as tardes na plaza de toros, são esses os cenários sucessivos em que se desenvolve a História do olho, ficção que, como as mais notórias daquelas que Sade imaginou, participa tanto do gênero noir como do gênero erótico e ilustra com traços de fogo uma filosofia, explícita em Sade (que confia a várias de suas personagens o afã de expor suas ideias), mas ainda implícita neste primeiro dos livros de Georges Bataille” (BATAILLE, 2003, p. 101).

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Capa da História do Olho. Foto: Man Ray

História do olho conta as descobertas sexuais de dois jovens de dezesseis anos, Simone e seu companheiro, o narrador, que se aventuram nas mais estranhas relações sexuais com objetos inusitados: ovo, urina, leite de gato, testículos do touro, etc. Com uma moral totalmente às avessas da conduta permitida e estimulada por uma sociedade conservadora, o narrador descreve sua relação com Simone em uma linguagem enxuta e realista, onde o realismo da linguagem se mistura com imagens incomuns, como na cena em que o personagem deita-se na grama ao lado de Simone e põe-se a refletir, observando a Via Láctea: “estranho rombo de esperma astral e de urina celeste cavado na abóbada craniana das constelações” (BATAILLE, 2003, p. 17).

A obra de Geogres Bataille foi discutida pelos principais teóricos franceses do século XX, entre eles Jean-Paul Sartre (1905-1980), Michel Foucault (1926-1984) e Roland Barthes (1915-1980). Os escritores latinos Júlio Cortázar e Mário Vargas Llosa também demonstraram sua admiração pelo livro de estreia de Bataille. Ao comentar sobre o pensamento moderno em voga naquele momento, Sartre o divide em dois campos, observando que cada campo possui uma maneira de interpretar o “absurdo”. De um lado aqueles para quem o “absurdo fundamental é a artificialidade, isto é, a contingência irredutível do nosso ‘estar aí”. Para outros, o absurdo fundamental “consiste no fato do homem ser uma contradição insolúvel. É este absurdo que Bataille sente mais vivamente” (SARTRE, 1968, p. 137).

Desse modo, na raiz de seu pensamento está a linguagem da sexualidade, que, transpondo todos os limites do discurso sobre Deus sustentado durante séculos pelo Ocidente, sua linguagem se transpõe e se cristaliza em um espaço que não pode ser outro senão o da transgressão.

No ensaio em que dedicou ao seu primeiro romance, Barthes identifica a metáfora do olho no romance como um objeto que varia ao longo da narrativa: ”O olho assemelha-se, portanto, à matriz de um percurso de objetos que são como que as diferentes “estações” da metáfora ocular. A primeira variação é a de olho [oeil] a ovo [oeuf]; uma variação dupla, a um só tempo de forma (as duas palavras têm um som comum e um som diferente) e de conteúdo (ainda que absolutamente distantes, os dois objetos são globulares e brancos). Assim se constitui plenamente a esfera metafórica em que se move toda a História do olho, do prato de leite do gato à enucleação de Granero e à castração do touro (aquelas glândulas, do tamanho e da forma de um ovo, eram de uma brancura carminada, salpicada de sangue, análoga a do globo ocular)” (BATAILLE, 2003, p. 117).

O romance de Bataille caminha na obscura esteira de autores como Marquês de Sade (1740-1814) e Lautréamont (1846-1870), cujas obras compartilham o mesmo conteúdo maligno, perverso e subversivo da literatura. Segundo Foucault, “a linguagem da sexualidade, pela qual Sade, desde que pronunciou suas primeiras palavras, fez percorrer em um único discurso todo o espaço do qual ele se tornou subitamente o soberano, alçou-nos até uma noite em que Deus está ausente e em que todos os nossos gestos se dirigem a essa ausência em profanação que ao mesmo tempo a designa, a dissipa, se esgota nela, e se vê levada por ela à sua pureza vazia de transgressão” (FOUCAULT, 2009, p. 29).

Como uma espécie de simbiose entre o erotismo e a sodomia de Sade por um lado e o anticlericalismo de Lautréamont por outro, a História do olho se acomoda confortavelmente nesse espaço incerto onde figuram as obras dos escritores malditos. Porém, a subversão em Bataille não pode ser interpretada no sentido comum da palavra. Sua escrita é possível em mundo onde “Deus está morto”, e não havendo um “ser exterior” capaz de subscrever os limites do “ser”, sua linguagem adquire as características de uma transgressão que para Foucault, precisa “libertá-la do que é escandaloso ou subversivo, ou seja, daquilo que é animado pela  potência do negativo” (FOUCAULT, 2009, p. 33). Entre a literatura de prazer (aquela que nos deixa em nosso local de conforto) e a literatura de gozo (essa que causa estranhamento e provoca o leitor), a obra de Bataille se encontra sem dúvida, ao lado da literatura de gozo, não apenas por seu conteúdo, mas por ser responsável por uma escrita que impele o leitor para o extremo de seus limites.

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Michel Foucault traça uma leitura sobre o romance de Gorges Bataille que difere da análise feita por Roland Barthes, ao não atribuir ao “olho” uma metáfora, mas se questionar sobre o significado desse olho “insistente” no romance de Bataille: “Sem dúvida, ele não é uma metáfora (…) Na verdade, o olho revirado, em Bataille, nada significa em sua linguagem, pela única razão de que lhe marca o limite. Indica o momento em que a linguagem chegada aos seus confins irrompe fora de si mesma, explode e se contesta radicalmente no rir, nas lágrimas, nos olhos perturbados do êxtase, no horror mudo exorbitado do sacrifício, e permanece assim no limite deste vazio, falando de si mesma em uma linguagem segunda em que a ausência de um sujeito soberano determina seu vazio essencial e fratura sem descanso a unidade do discurso” (FOUCAULT, 2009, p. 43).

A história do “olho” no romance parece apontar para mais de um significado: o primeiro é que o o olho pode ser considerado metaforicamente dentro dos jogos sexuais do narrador e sua companheira, isto é, o “olho” como metáfora do cu. Outro possível significado para o “olho” vem dos traços autobiográficos do romance e das imagens em que o autor descreve o globo ocular de seu pai, quando este “mijava na minha frente, debaixo de um cobertor que ele, sendo cego, não conseguia arrumar. O mais constrangedor, aliás, era o modo como me olhava. Não vendo nada, sua pupila, na noite, perdia-se no alto, sob a pálpebra: esse movimento acontecia geralmente no momento de urinar” (BATAILLE, 2003, p. 85). Bataille sentia uma espécie de trauma de suas lembranças de infância, as quais conviveu com seu pai, um homem sifilítico, cego e que depois se tornou paralítico. A passagem acima é descrita no capítulo “reminiscências” de História do olho e mostra a influência que esses fatos tiveram no desenvolvimento de seu pensamento. Esse estranho prazer e esse jogo interminável com o olho é associado também pelo autor a uma cena do filme Um cão andaluz, de Luis Buñuel e Salvador Dalí, precisamente a cena em que um homem corta com uma gilete os olhos de uma mulher. Bataille imaginou que os espanhóis, ao produzirem a cena, também como ele, sentiram esse aspecto que “provoca igualmente reações agudas e contraditórias” .

 

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