No ano em que a Revolução Russa de 1917 completa seu primeiro centenário, é lançado no Brasil o romance Viva! (Editora 34) do escritor e historiador francês Patrick Deville, que resgata os últimos anos de exílio de Leon Trotsky no México e a saga do escritor e poeta inglês Malcolm Lowry. Duas figuras ideologicamente antagônicas que oscilaram entre a genialidade, a loucura e a tragédia. Depois de ajudar a fazer a Revolução ao lado de Lênin, e após a morte deste, Trotsky encontra a hostilidade de Stálin e é expulso do partido, depois é expulso da U.R.S.S. até ser finalmente assassinado em 1940. Malcolm Lowry, por sua vez, era um burguês de orientação conservadora, sustentado pelas mesadas do pai, e pretendia transformar a prosa poética inglesa. Acabou perdendo a razão após concluir seu romance À sombra do vulcão, que durou cerca de dez anos para ser finalizado.
Além dos dois personagens centrais, temos a presença do próprio autor, que narra encontros, entrevistas e descreve os locais que visitou e pelos quais os protagonistas passaram, como Kazan, cidade russa às margens do rio Volga que foi tomada pelo Exército Vermelho em 1918 ou a cabana no Canadá em que Lowry se refugiou para terminar o seu romance, após deixar o México. A obra de Deville traça um vasto panorama da efervescência política e cultural que sacudia o mundo durante as primeiras décadas do século passado como as revoluções mexicana e russa e a revolta contra a presença americana na Nicarágua, liderada por Augusto César Sandino. Diferentemente do romance do escritor cubano Leonardo Padura – no qual o autor de Literatura e Revolução também é um dos protagonistas – onde a narrativa histórica é ficcionada, o livro de Patrick Deville se apresenta como um “romance sem ficção”, alternando a narração entre a terceira e a primeira pessoa, apresentando minúcias de fatos históricos, cartas, confidências, ao mesmo tempo em que subverte e fragmenta a linearidade temporal da obra.
Em volta dos protagonistas, surgem dezenas de outros personagens ilustres que fizeram parte daqueles anos agitados no México do então presidente Lázaro Cárdenas, que governou o País de 1934 até 1940. Entre pintores, escritores, fotógrafos e revolucionários, o autor nos apresenta situações em que entram em cena Frida Kahlo, Diego Rivera, Victor Serge, André Breton, Antonin Artaud, Tina Modotti, Edward Weston, David Alfaro Siqueiros, este último sendo o responsável pelo primeiro atentado que Trotsky sofrera no México. Após fracassar em sua tentativa, David Alfaro Siqueiros se exila no Chile, onde é recebido pelo poeta Pablo Neruda. Umas das passagens do romance fala do momento em que, ainda exilado na Noruega, Trotsky pensava em partir para Barcelona e lutar na Guerra Civil Espanhola ao lado de Andreu Nin, dirigente do POUM, torturado e assassinado por stalinistas espanhóis.
“Na Noruega, Trotsky considerara a possibilidade de ir para a Catalunha, isso em 1936, vinte anos depois de a polícia espanhola tê-lo embarcado à força no porto de Barcelona, quando encontrara Arthur Cravan a bordo do Montserrat. E podemos imaginar, nos fronts republicanos, o que seria o anúncio da presença clandestina do antigo chefe do Exército Vermelho. Sem dúvida ele não teria durado muito na guerra fratricida entre o POUM e o Komintern. Depois de sabotar a revolução espanhola e antes de assinar o pacto germano-soviético, Stálin exigira que o ouro do Banco da Espanha fosse posto a salvo em Moscou. Em troca do dinheiro, enviara uns poucos combatentes e uma pletora de comissários políticos. Entre eles o general Kotov e sua companheira Caridad Mercader, mãe de Ramón, e David Alfaro Siqueiros, e Vittorio Vidali e sua companheira Tina Modotti, todos membros ou afiliados da turminha do México”. (2016, p. 85)
Em outra passagem, Patrick Deville descreve um diálogo entre Walter Benjamin e Bertolt Brecht sobre a qualidade literária do ex Comissário do Povo. Segundo Deville, após ler Minha Vida, a autobiografia de Trotsky, Benjamin ficara impactado com a obra e, ao comentar sobre o assunto com Brecht, o poeta respondera que “Trotsky bem poderia ser o maior escritor europeu de seu tempo”.
“Em uma temporada em Ibiza, em 1932, Walter Benjamin é profundamente tocado pela leitura de Minha Vida, e mais tarde Bertolt Brecht declara diante dele que Trotsky bem poderia ser o maior escritor europeu de seu tempo. No ano seguinte, os livros de Walter Benjamin são queimados, tal como os de Stephen Zweig. Em 26 de setembro de 1940, um mês depois do assassinato de Trotsky neste lugar onde nos encontramos, Walter Benjamin desembarca do trem e se suicida num quarto de hotel em Port-Bou, dois anos antes do suicídio de Stephen Zweig no Brasil”. (2016, p. 78)
Uma das características positivas do romance de Deville é conseguir fazer ligações em tempos e espaços distintos, traçando laços e unindo personagens díspares como Lowry e Trotsky ou Artaud e Breton. Sua obra é uma celebração da utopia, dos grandes sonhos e das grandes realizações históricas, políticas e estéticas, sem esquecer as dores e perdas acumuladas às margens de tais processos.